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Cidadania cultural ou mercantilização da cultura: limites e contradições da política pública brasileira para a área da cultura

19 Mar, 2007

Citoyenneté culturelle ou la marchandisation de la culture: limites et contradictions de la politique publique brésilienne dans le domaine de la culture

 

Résumé

La politique brésilienne courant dans  le domaine de la culture a comme aspect principal de appui culturelle  la renoncement fiscal des entreprises.  Au moyen de cette modalité d’ appui culturelle l’État a comme tendance, transférer  ses fonctions à l’initiative privée. Cet étude utilise pour référence la lois de appui culturelle actuel au Brésil et Minas Gerais (Loi Rouanet et Loi de l’État  d’appui  culturelle ), et établit des rapports entre les sources d’appui,  les produits et services culturels et les impacts provoqués par cette modalité de mécénat  dans les cultures locales.  Pour cela, le concept de citoyenneté culturelle a été analysé par rapport aux limitations et des possibilités des dispositifs légaux présents dans la politique publique rendre effective cette conception dans le contexte brésilien.

Mots clés

Politique publique ; Citoyenneté culturelle ; Politique culturelle ; Diversité culturelle ; Droit culturel ; Information

Em português

Resumo

A atual política brasileira para a área da cultura tem como vertente principal as leis de incentivo baseadas na renúncia fiscal das empresas. Através dessa modalidade de incentivo à cultura, o Estado tem, como tendência, repassado suas funções à iniciativa privada. Esse trabalho toma por referência as leis de incentivo à cultura em vigor no Brasil e em Minas Gerais (Lei Rouanet e Lei Estadual de Incentivo à Cultura), e procura estabelecer relações entre as fontes de patrocínio, os produtos ou serviços culturais contemplados e os impactos provocados por essa modalidade de fomento nas culturas locais. Para tanto, recorre ao conceito cidadania cultural e reflete acerca dos limites e possibilidades dos dispositivos legais presentes na política pública para tornar efetiva essa concepção no contexto brasileiro.

Palavras chaves

Política pública ; Cidadania cultural ; Política cultural ; Diversidade cultural ; Direito cultural ; Informação.

Pour citer cet article, utiliser la référence suivante :

Aparecida Moura Maria, Ziviani Paula, « Cidadania cultural ou mercantilização da cultura: limites e contradições da política pública brasileira para a área da cultura« , Les Enjeux de l’Information et de la Communication, n°07/2, , p. à , consulté le , [en ligne] URL : https://lesenjeux.univ-grenoble-alpes.fr/2006/supplement-a/26-cidadania-cultural-ou-mercantilizacao-da-cultura-limites-e-contradicoes-da-politica-publica-brasileira-para-a-area-da-cultura

1) Introdução

Nos últimos anos assistimos a um paulatino movimento de privatização e justaposição dos processos culturais locais em esquemas agregadores de caráter global. Tratam-se de lógicas comerciais e interesses políticos que, impulsionados pelo imperativo tecnológico, incidem de maneira orgânica sobre os patrimônios culturais transformando as suas estruturas internas em produtos culturais prêt-à porter.
Essas transformações, contudo, não têm acontecido sem a devida resistência e manifestação dos distintos pertencimentos identitários.  Nesse sentido, inúmeras têm sido as formas de fazer face a esse fenômeno e vão desde as manifestações explícitas de etnocentrismo até o fundamentalismo religioso e seus desdobramentos políticos.
Nesse contexto Bauman, afirma que, Tornamo-nos conscientes de que o “pertencimento” e a “identidade” não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o “pertencimento quanto para a identidade”. (Bauman, 2005, p.17)
Presente nesse emaranhado de transformações de elevada complexidade está a efetivação de um imaginário de mobilidade global expresso em processos técnicos de desterritorialização e na intensa circulação de bens, pessoas e idéias. Esse imaginário funda-se nos processos comunicacionais, na exteriorização do cérebro, na imaterialidade e na ausência da centralidade da experiência.
Nessa pletora de transformações as culturas locais também sofrem alterações significativas que oscilam entre o enclausuramento e a hibridação desmedida das práticas culturais.
Em síntese, vive-se hoje em um mundo capitalista no qual o entretenimento se satisfaz como consumo. Nesse sentido, o foco do produto cultural deixou de ser o público e as camadas populares de produção, para tornar-se o mercado.
No cenário global de mudanças, as políticas públicas nacionais para a área da cultura tentam de alguma maneira acompanhar e incorporar o curso dessas modificações. Para tanto, procuram assimilar a linguagem e o marco conceitual e, consequentemente, os introduzem nos dispositivos legais. Contudo, a ausência de um debate público sistemático com os sujeitos envolvidos nos processos culturais nacionais tem provocado anomalias nas formas e na gestão pública da cultura nacional.
No Brasil, o debate político acerca dos dispositivos federais de apoio à cultura teve início nos anos 80 e se consolidou em 1991 com a criação da Lei Rouanet, que passou a ser um modelo de implementação de política pública cultural nas instâncias municipais e estaduais. Assim, embora os estados e municípios tenham hoje dispositivos legais específicos, as políticas deles decorrentes são bastante semelhantes ao estabelecido na lei federal.
Em face da ingerência estatal e empresarial nos processos culturais, as formas de produzir cultura no contexto nacional alteraram-se significativamente e passaram a exigir uma ampla rede profissional para a gestão dos produtos e serviços culturais.
Tudo leva a crer que as novas lógicas de gestão do mundo da vida, já assinalados anteriormente, estariam fortemente presente nessas novas formas de compreender e gerir a cultura nacional. Diante disso indaga-se: Qual é a noção de cultura que está presente nas políticas públicas de incentivo? Quais os principais sintomas dessa política na articulação da cultura local? Qual o ideal de cultura que está embutido na relação Estado, sociedade e empresa privada? Quais os sintomas que podemos observar e qual o papel da informação nesse processo? Em que medida as políticas públicas voltadas para o setor da cultura e normatizadas pelas leis de incentivo levariam a uma cidadania cultural?
Propõe-se analisar em que medida o fluxo informacional nas instâncias da lei de incentivo estariam conduzindo ou não a um princípio de democratização. Como afirma Yúdice (2004, p. 41), “alguns direitos jurisdicionados se sobrepõem a direitos culturais, como no caso do direito à informação”.
Para atingir o objetivo proposto, aborda-se o conceito de cultura e os impactos do processo de globalização e o advento das novas tecnologias de informação e comunicação na cultura. Explica-se os entendimentos de política pública, política cultural e cidadania cultural, e, finalmente, faz-se uma análise dos dados da cultura fomentada pelas leis de incentivo, abrangendo seu contexto histórico e funcionamento. Diante do cruzamento de dados das iniciativas apoiadas pela lei, percebem-se os limites e as contradições e o amplo processo de mercantilização da cultura em curso.

2) Cultura e os impactos da globalização

De aparência supostamente econômica, a globalização articula de modo interdependente homens, bens materiais, ações políticas e culturais em dimensões globais. Contudo, Bauman afirma que as instituições políticas não acompanham as mudanças na mesma extensão e que assim, o Estado-nação vem perdendo a centralidade, enfraquecendo-se:
(…) não mais capazes de reunir recursos suficientes para manter as contas em dia com eficiência e de realizar uma política social independente, os governos dos Estados não têm escolha senão seguirem as estratégias de desregulamentação: isto é, abrir mão do controle dos processos econômicos e culturais, e entregá-los às “forças do mercado”, isto é, às forças essencialmente extraterritoriais. (Bauman, 2003, p. 89)
No contexto de discussão da cultura, a globalização passa a impactá-la fortemente. As novas tecnologias da informação têm dado sustentação à verdadeira revolução tecnológica dos dias atuais e têm reestruturado toda a economia mundial concentrada nos grandes conglomerados transnacionais, que atuam de maneira integrada nos mercados financeiros, através de negócios e do comércio internacional.
O impacto das formas globais de organização da economia na vida ordinárias das pessoas é tamanho que elementos antes não vistos como mercadoria passam a ser. A abordagem cultural de nosso tempo, caracterizada por esse quadro de globalização acelerada, vê a cultura como recurso e a atividade cultural como um negócio.
A massificação da cultura a partir dos grandes centros produtores de informações pode acarretar num sentimento de abandono e de não pertencimento para as populações periféricas. Hall (2002) faz menção ao sentimento de fragmentação e “crise de identidade” provocados pelas novas relações sociais ditadas pela globalização e pelo avanço das novas tecnologias.
Fragmentação e singularidades do sujeito, sujeito esse que se encontra em um grupo enquanto jovem, em outro enquanto mulher, em outro enquanto morador da favela e subseqüentemente. As lutas sociais não fazem mais parte da questão nacional, estão para além do Estado-nação. Costa (2002) propõe discutir se o Estado-nação conforma ainda os espaços discursivos privilegiados para a tematização de assuntos de relevância comum, pois os cidadãos nacionais encontram-se “inseridos, simbólica e materialmente, em teias de relações que extrapola os limites da nação” (p. 154).
Nesse sentido, a cultura vai exercer uma função social de extrema importância. O medo e a insegurança afastam as pessoas dos espaços públicos e da procura da arte, habilidades necessárias para participação da vida pública. A cultura é um modo de vida, é o inter-relacionamento de todas as práticas sociais que funcionam como o “cimento” responsável pelas amarras da sociedade.
A ‘teoria da cultura’ é definida como ‘o estudo das relações entre elementos em um modo de vida global’. A cultura não é uma prática; nem apenas a soma descritiva dos costumes e ‘culturas populares’ das sociedades, como ela tende a se tornar em certos tipos de antropologia. Está perpassada por todas as práticas sociais e constitui a soma do inter-relacionamento das mesmas. (…) A cultura é esse padrão de organização, essas formas características de energia humana que podem ser descobertas como reveladoras de si mesmas (…) dentro ou subjacente a todas as demais práticas sociais. A análise da cultura é, portanto, ‘a tentativa de descobrir a natureza da organização que forma o complexo desses relacionamentos’. (Hall, 2003, p. 136)
A cultura funciona como a “liga” social necessária, já que “com a religião e a ideologia neutralizadas, e com a evidência de que a economia não alicerça uma civilização, resta para assumir o papel de concreto da comunidade a cultura” (Coelho, 2000, p. 119). O autor vai afirmar que existe uma cisão entre as esferas da cultura propriamente dita, da sociedade e da personalidade (afirmação da própria identidade do indivíduo), o que produz como resultado, a fragmentação da consciência social.

3) Política Pública, Política Cultural e Cidadania Cultural

A natureza do Estado e a sua relação com a sociedade civil estão em processo de transformação. A adoção de políticas públicas que visam à redução do déficit fiscal do governo e o enxugamento das burocracias estatais reforçam a tendência à privatização de empresas e serviços públicos. A implementação de estratégias de desregulamentação, tanto pode trazer benefícios com o alargamento dos espaços de co-gestão democrática das políticas governamentais, quanto pode ser prejudicial, na medida em que são adotados modelos gerenciais inspirados no setor privado, onde políticas públicas seriam “publicizadas”, ou seja, receberiam a concessão do Estado para serem executadas por organismos privados, sem que fiquem claros os mecanismos de controle dessas atividades por parte da sociedade e instituições democráticas.
Entende-se por política pública o conjunto de ações coletivas voltadas para a garantia dos direitos sociais, configurando um compromisso público. Qualquer política pública está integrada em um conjunto de políticas governamentais e constitui uma contribuição setorial à busca do bem-estar coletivo.
O conceito de cidadania envolve a relação entre direitos e deveres dos indivíduos diante do Estado, que lhe permitem participar da vida pública e política. Desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem da Onu, em 1948, a cultura passou a ser pensada como direito, sendo os direitos culturais elevados à categoria de direitos fundamentais da pessoa humana e, como direito, podem e devem ser exercidos e exigidos. Os direitos culturais são aqueles que o indivíduo tem em relação à cultura da sociedade da qual faz parte, que vão desde o direito à produção cultural, o direito à informação, passando pelo direito de acesso à cultura e chegando ao direito à memória histórica. Esse conjunto de direitos integra a concepção de cidadania cultural.
Os direitos econômicos e políticos não podem realizar-se separadamente dos sociais e culturais. Rosaldo (apud Yúdice, 2004, p. 43) coloca que a cultura serve de base ou garantia para fazer “reivindicações de direitos no terreno público”. A cultura é condição necessária para a formação da cidadania, uma vez que é ela que vai proporcionar o sentimento de segurança e aconchego, em que os indivíduos se sentem partícipes de um grupo. A proteção dos direitos humanos, em uma sociedade (cultural), requer a observância dos direitos culturais, enquanto direitos universalmente aceitos.

4) Política Pública Nacional – Leis de Incentivo à Cultura

Após 20 anos de ditadura militar no país, foi implantado o Ministério da Cultura, em 1985, com o argumento de que o governo federal deveria assumir seu papel na coordenação da política cultural. As leis de incentivo se tornaram uma das principais fontes de fomento à cultura no Brasil, elevando o número de projetos culturais patrocinados e os valores gastos no setor. A seguir, passamos a expor dois diferentes dispositivos de incentivo à cultura existentes no país.

4.1) Dispositivo Federal de Incentivo à Cultura

Em 1986, foi criada a Lei Sarney, que desde a sua implantação levantou controvérsias sobre a real contribuição para o desenvolvimento cultural. A Lei Sarney financiava as atividades culturais por meio da concessão de incentivos fiscais aos contribuintes do Imposto de Renda, fixando a possibilidade de abatimento de até 100% do valor da doação, 80% do patrocínio e 50% do investimento na área da cultura.
Revogada a Lei Sarney, em 1991 foi criada a Lei Federal de Incentivo à Cultura (Lei nº 8.313/91), mais conhecida como Lei Rouanet, que compreende toda a base da política de incentivos praticada até hoje no Brasil. A diferença em relação à lei anterior foi a sua formalidade, com a criação de mecanismos de fiscalização mais rígidos.
Instituído pela Lei, o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), por meio de quatro mecanismos de incentivo(1), tem como finalidade
facilitar à população o acesso às fontes da cultura; estimular a produção e difusão cultural e artística regional; apoiar os criadores e suas obras; proteger as diferentes expressões culturais da sociedade brasileira; proteger os modos de criar, fazer e viver da sociedade brasileira; preservar o patrimônio cultural e histórico brasileiro; desenvolver a consciência e o respeito aos valores culturais nacionais e internacionais; estimular a produção e difusão de bens culturais de valor universal; dar prioridade ao produto cultural brasileiro.(2)
O Mecenato, o mais praticado e objeto deste estudo, viabiliza benefícios fiscais para investidores que apoiarem projetos culturais sob forma de doação ou patrocínio. Empresas e pessoas físicas aproveitam a isenção em até 100% do valor no Imposto de Renda e investem em projetos culturais. O mecanismo inaugurou o “mercado cultural”, uma vez que estabelece a necessidade de parceria entre o agente cultural (Pessoa Física ou Jurídica), o Setor Produtivo (Iniciativa Privada) e o Estado. Os limites de renúncia fiscal global são fixados anualmente pelo Governo Federal, sendo permitido aplicar o contribuinte pessoa física até 6% e o contribuinte pessoa jurídica até 4% do imposto de renda devido.

  1. O Ministério da Cultura menciona que há necessidade de se promover um equilíbrio do incentivo na distribuição geográfica, por regiões (ver tabela 1), mas não estabelece os percentuais.

Tabela 1 – Investimentos por regiões da Federação (1995 a 2005)

Região

R$ mil

          %

Centro-Oeste 444.855,60

24,62

Nordeste 209.257,10

11,58

Norte 67.070,50

3,71

Sudeste 977.421,50

54,10

Sul 107.971,30

5,98

Total 1.806.576,00

100,00

Fonte: Site do Ministério da Cultura, publicado por Gerência de Planejamento Setorial – GPS/DGE

Na tabela abaixo, conseguimos visualizar as cinco empresas que mais investiram em projetos culturais nos anos 2001/2005, no âmbito federal. A maioria pertence à iniciativa privada, até pelo maior número de empresas privadas no país em detrimento das públicas.

Tabela 2 – 5 maiores incentivadores nas Leis – Rouanet (8.313/91) e Audiovisual (8.685/93)

2005

2004

2003

2002

2001

Incentivador

Valor*

Incentivador

Valor*

Incentivador

Valor*

Incentivador

Valor*

Incentivador

Valor*

PETROBRÁS

169,7

PETROBRÁS

97,4

PETROBRÁS

90,5

PETROBRÁS

51,3

PETROBRÁS

 80,3

 

Banco do Brasil S.A

23,5

 

ELETROBRÁS

15,5

 

BR Distribuidora S.A

16,8

 

BR Distribuidora S.A

29,3

 

BR Distribuidora S.A

31,9

 

Companhia Vale
do Rio Doce

21,2

 

Gerdau Aço Minas S.A

15,2

 

ELETROBRÁS

8,7

 

ELETROBRÁS

20,8

Banco do Estado de MG/Banco Itáú BBA S.A

19,3

 

Gerdau Aço Minas S.A

13,8

 

Cia Siderúrgica
Nacional

14,5

 

Banco do Brasil S.A

8,5

Banco do Estado de MG/Banco Itáú BBA S.A

15,9

 

ELETROBRÁS

19,1

 

ELETROBRÁS

13,7

 

Banco do Brasil S.A

11,0

Cia Brasileira de Bebidas

8,3

 

Brasil Telecom S.A Matriz

11,7

Cia Brasileira de Distribuição

13,0

Fonte: Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura/Ministério da Cultura – * R$ em milhões

A cultura no Brasil está nas mãos dos bancos, empresas multinacionais ou nacionais de grande porte. Precisamos refletir nas implicações deste importante dado, refletir no tipo cultura (cultura globalizada) que está sendo patrocinada pelas grandes empresas, já que a renúncia fiscal tem sido o maior fomento à cultura no país.

4.2) Dispositivo Estadual de Incentivo à Cultura

A Lei Estadual de Incentivo à Cultura de Minas Gerais foi criada em 1997, como instrumento de estímulo, dinamização e consolidação do mercado cultural no Estado. Possui como base o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS, ou seja, as empresas que apoiarem financeiramente projetos culturais poderão deduzir do imposto devido até 80% do valor destinado ao projeto. A legislação permite ainda que seja incentivador à cultura o contribuinte inscrito na dívida ativa até 31 de dezembro de 1999, podendo ele quitar a dívida parcelada com 25% de desconto.
De acordo com dados da Fundação João Pinheiro (FJP)(3), nos seis primeiros editais de funcionamento da Lei Estadual de Incentivo à Cultura de Minas Gerais (1998-2002) foram realizados 1.531 projetos com recursos da renúncia fiscal e 11 projetos com recursos oriundos de débito inscrito em dívida ativa. Foram patrocinados por 378 empresas. No que tange à origem do capital, constata-se que 99,5% empresas pertencem à iniciativa privada, sendo que uma delas é de economia mista, com capital majoritariamente privado. Apenas duas pertencem ao poder público.
A mesma pesquisa mostra que os projetos das áreas de literatura; biblioteca, museus e centros culturais; seminários e cursos e patrimônio representam apenas 23,1% dos projetos incentivados. No que diz respeito à modalidade do projeto cultural – realização de eventos (4), elaboração de produto cultural ou manutenção de entidades – a pesquisa indica que conseguem captar recursos 75% dos projetos que propõem a realização de eventos, 41% dos que objetivam a produção de bens culturais, contra uma participação quase inexpressiva dos que possuem como finalidade a manutenção de entidades artístico-culturais, construção ou reforma de espaços e aquisição de acervos.
Ou seja, são priorizados os eventos em detrimento dos serviços culturais de longo prazo. Os projetos beneficiados são os de grande visibilidade e repercussão junto ao público, com retorno institucional favorável a empresa patrocinadora, tais como, festivais (música, dança, teatro), espetáculos e shows de artistas, na maioria das vezes, já consagrados. Prevalece também a preferência pelos projetos mais profissionalizados e afinados com a marca da empresa, possibilitando o desenvolvimento de ações de comunicação e posicionamento das marcas no mercado. Agrega-se à marca e ao produto vendido a carga simbólica das atividades artístico-culturais.
De acordo com a FJP, mais de 65% das empresas investem em projetos culturais motivadas pelo ganho de imagem institucional e mais de 27% investem interessadas na agregação de valor à marca da empresa.
Baseando-se ainda na mesma pesquisa, se considerarmos somente os projetos apresentados por pessoas físicas residentes em Belo Horizonte, no período dos editais de 1998 a 2002, veremos que 47% são de empreendedores da região centro-sul, 15,3% da região leste e 12,3% da região oeste. As regiões periféricas apresentaram menos de 4% dos projetos da capital mineira. Em 2005, foram aprovados 558 projetos das 2275 propostas apresentadas para captação através da Lei Estadual, sendo 35,5% dos projetos aprovados do interior e 64,5% da capital.
No ranking (5)das 10 maiores incentivadoras de projetos culturais por volume de recursos, no mesmo período, as empresas Usiminas e Telemig Celular concentram 39,1% de todo o investimento realizado, sendo as maiores investidoras em cultura pela lei. Em seguida, as empresas Grupo Arcelor, Maxitel S/A, Cataguases-Leopoldina, Ctbc Telecom, Magnesita, Telemar, Acesita S/A e Camargos Corrêa Cimentos, respectivamente. A Lei Estadual de Incentivo permite que apenas as médias e grandes possam se beneficiar do incentivo fiscal previsto na legislação. As microempresas e as de pequeno porte já são contempladas com outros benefícios do Estado.
As empresas investem menos recursos próprios em cultura. Em 2002, o total investido pelas empresas usando o mecanismo de renúncia fiscal foi de 279,4 milhões de reais, um aumento de 121% em termos reais sobre os 126,2 milhões de reais investidos em 1995, como é possível verificarmos na Tabela 3.

Tabela 3 – Empresas investem menos recursos próprios em cultura

Investimentos de leis
federais de incentivo fiscal e contrapartida das empresas (em milhões de reais)

Ano

Renúncia
Fiscal*

Contrapartida do Empresariado*

1995

126,2

246,2

1996

115,9

235,5

1997

181,1

371,1

1998

210,6

292,6

1999

218,9

199,1

2000

304,3

161,3

2001

353,2

195,6

2002

279,4

86,7

Fontes: Ipea/Siafi/Sidor/Ministério da Cultura
Valores deflacionados pelo IGPD-DI médio anual (dezembro 2002)    * R$ em milhões

A parcela de recursos próprios investida pelo empresariado cai na mesma proporção em que cresce a parcela referente à renúncia fiscal. A Tabela 3 nos mostra que os investimentos das empresas em cultura com recursos próprios caíram de 246,2 milhões de reais em 1995, para 86,7 milhões de reais em dezembro de 2002.
As políticas públicas de renúncia fiscal operam não como um instrumento gerador de cidadania, consciência de direitos, coesão e paz social. Ao contrário do que se espera, são o capital e o setor privado quem escolhem o que patrocinar e o Estado acaba por legitimar esse processo.

5) Considerações Finais

Conforme assinalado ao longo desse trabalho não é possível pensar as iniciativas estatais no âmbito da cultura em desconexão com as transformações sociais que acontecem hoje no mundo inteiro. Atualmente, a extrema conectividade experimentada permite que cada ação local tenha imediatamente desdobramentos e repercussões em proporções globais.
As tecnologias de comunicação e a intensa fluidez da informação permitiram a consolidação de uma sociedade móvel para quem os limites das fronteiras do Estado-nação operam em uma outra lógica.  Hoje é possível conduzir e participar de eventos sociais sem estar presente fisicamente, o que se convencionou chamar – pilotagem à distância.  Essa modalidade de participação à distância nos processos sociais deu margens para a espetacularização e a mercantilização da cultura; agora vista e consumida a partir de clics instantâneos das novas máquinas de interação.
Os sujeitos que permanecem irremediavelmente atados ao Estado-nação são, por seu turno, convidados sistematicamente a assimilar a cultura como produto perecível, supra- identitário e descartável.
Nesse sentido, buscamos evidenciar os vínculos centrais que atam a atual política cultural brasileira aos fenômenos sociais mais amplos.  As atuais leis de incentivo à cultura e os seus desdobramentos no mundo da vida deixam entrever o liame entre o local e o global.
As leis de incentivo assumiram o papel institucional de fomento à cultura no país, mas não existe uma orientação clara do poder público de como e em que investir, não são claros os aspectos que condicionam a captação de recursos para a viabilização de projetos. Se o projeto cumpre os pré-requisitos estipulados na lei, recebe a chancela do governo, uma espécie de selo de qualidade, e assim estão autorizados a procurar empresas interessadas em investir. A decisão das empresas é estritamente mercadológica, já que estão interessadas no retorno que a iniciativa poderá gerar para a sua marca.
Os mecanismos de incentivo tornaram-se polêmicos, em especial, por serem contraditórios com o objetivo da parceria e complementaridade entre o setor público e o setor privado. A lei precisa de aperfeiçoamento para cumprir seu papel de fomento.
Além disso, as atuais leis de incentivo criaram uma ampla rede profissional de interdependência que, embora não concordem com os elementos subjacentes a elas, já não sabem mais conceber a cultura desprovida desses mecanismos de regulação.
A crítica aos mecanismos de regulação é de certo modo sufocada em virtude de incidir sobre um cenário no qual os atores se conhecem e disputam entre si. A crítica, até o momento, é velada e produziu poucos mecanismos de monitoramento das políticas públicas.
Nessa correlação de forças, a idéia de cidadania cultural é amplamente decantada como unidade discursiva das políticas públicas, contudo no mundo da vida ela é mais e mais rarefeita.
No cenário apresentado, verifica-se uma visível tensão e polarização entre a tradição e a modernidade no que concerne à cultura.  Acredita-se que toda retórica que constitui a atual política cultural nacional precisa dar lugar a um projeto político pactuado com a participação dos indivíduos, grupos e setores sociais que compõem a sociedade civil, permitindo dessa maneira a expansão da cidadania no âmbito da cultura.

Notes

(1) Fundo Nacional de Cultura (empréstimos reembolsáveis ou cessão a fundo perdido), Fundo de Investimento Cultural e Artístico (Ficart), ainda não implementado, a concessão da Bolsa Virtuose (suspenso provisoriamente), a concessão de passagens para apresentação de trabalhos e o Mecenato.

(2) BRASIL. Ministério da Cultura. Lei Rouanet. In: Notícias Lei Rouanet. Disponível em <http://www.cultura.gov.br> Acesso em: 01 out. 2005.

(3) Pesquisa do Centro de Estudos Históricos e Culturais: Luzes da ribalta: em cena o incentivo empresarial à cultura mineira.

(4) A pesquisa caracteriza a modalidade eventos como: espetáculos e shows; formação e qualificação artística; festival, feira, semana cultural; circulação de show e exposição de artes plásticas.

(5) Fonte: Dados básicos: Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais (SEC/MG). Elaboração: Fundação João Pinheiro (FJP). Centro de Estudos Históricos e Culturais (CEHC). 2004.

Referências Bibliográficas

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YUDICE, George. A convivência da cultura:usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.

Auteurs

Maria Aparecida Moura

.: Maria Aparecida Moura – Professora Adjunta da Escola de Ciência da Informação da UFMG, Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP (2002) e Pós-doutoranda em Semiótica e novas mídias pela Maison des Sciences de l’Homme (MSH – Paris). Atua como orientadora no Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação da UFMG

Paula Ziviani

.: Paula Ziviani – Bacharel em Filosofia pela UFMG (2002), pós-graduada em Gestão Cultural (lato sensu) pelo Centro Universitário UNA (2005) e mestranda em Ciência da Informação da UFMG, linha de pesquisa Informação, Cultura e Sociedade.