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Os jornalistas-intelectuais no Brasil: a construção de uma legitimidade e de um savoir-faire

19 Jan, 2007

Résumé

Dans cet article, nous discutons quelques aspects qui concernent l’identité de ce que nous appelons les journalistes intellectuels. Nous cherchons à comprendre le journalisme comme un espace socio discursive ouvert, marqué par une dispersion de pratiques. A partir d’une analyse pilote, fondée sur l’interactionnisme symbolique, nous avons investigué des extraits de l’histoire de vie des journalistes Alberto Dines e Franklin Martins

Mots clés

journalistes-intellectuels, dispersion, interactionnisme symbolique, Brésil.

Em português

Resumo

Neste artigo, discutimos alguns aspectos concernentes à identidade do que chamamos aqui de jornalistas-intelectuais. Buscamos enquadrar o jornalismo enquanto espaço sócio-discursivo aberto, marcado por uma dispersão de práticas. À partir de uma análise-piloto, fundamentada no interacionismo simbólico, investigamos alguns extratos das historias de vida dos jornalistas Alberto Dines e Franklin Martins.

Palavras-chave

jornalistas-intelectuais, dispersão, interacionismo simbólico, Brasil.

Pour citer cet article, utiliser la référence suivante :

Pereira Fábio Henrique, « Os jornalistas-intelectuais no Brasil: a construção de uma legitimidade e de um savoir-faire« , Les Enjeux de l’Information et de la Communication, n°07/2, , p. à , consulté le , [en ligne] URL : https://lesenjeux.univ-grenoble-alpes.fr/2006/supplement-a/28-os-jornalistas-intelectuais-no-brasil-a-construcao-de-uma-legitimidade-e-de-um-savoir-faire

Introduction

O objetivo deste artigo é discutir o processo de emergência no Brasil de um grupo de atores, definidos como jornalistas-intelectuais. Tratam-se de indivíduos situados num espaço sócio-discursico híbrido, cuja identidade e a legitimidade oscilam entre a prática de jornalístas e  de intelectuais. Para compreender essa categoria, avançaremos a partir de duas frentes de trabalho:

a) Buscaremos desconstruir premissa de que exisitiria  uma espécie de essencialismo nas atividades de jornalistas e intelectuais, vistos enquanto espaços sócio discursivos fechados, identificados a partir de um conjunto de práticas e de uma categoria sócio-profissional ideais. Essa postura tende a negar que o processo de construção desses espaços se faz dentro de uma perspectiva interdiscursiva onde jornalitsas e intelectuais interagem, se relacionam e se (re)definem mutuamente (seção 1.1). É preciso levar em conta ainda o processo social de objetivação dessas categorias, ligado às dinâmicas históricas das evolução do meio cultural  brasileiro à partir da década de 1960 (seção 1.2).

b) Um segundo ponto reside nas na forma como as trajetórias individuais dos atores explicam a construção dessa grupo social. Ou seja, como o estatuto de jornalistas-intelectuais depende da forma como esses indivíduos se relacional com as instâncias de socialização e legitimação, de mecanismos institucionais de reconhecimento intelectual, internos e externos ao meio. Como objeto de um estudo preliminar, serão analisados de forma breve alguns extratos das bibliografias de Alberto Dines e Franklin Martins.

A escolha do atores seguiu critérios de produção editorial, legitimidade no meio profissional e o fato de representarem gerações distintas de jornalistas atuantes durante o período da ditadura. A geração de Alberto Dines é composta pelos profissionais já atuantes na imprensa no período anterior ao golpe. Já Franklin Martins adquire sua formação após o golpe. Ele representa uma geração de transição entre os jornalismo político-literário dos anos 1950-1970 e o jornalismo de “mercado” que emerge nos anos 1980.

1. Jornalistas e intelectuais: desconstruindo categorias compreendendo as dinâmicas de construção da identidade

1.1 – O Jornalismo como formação discursiva

Para compreendermos como emergem os jornalistas-intelectuais, atores situados às margens de uma práticas socialmente reconhecidas como “fechadas” é preciso analisar as dinâmicas implícitas ao processo de construção desse espaço. Os trabalhos de Ruellan (1993; 1994) sobe o processo construção do jornalismo na França, mostram como, historicamente, o processo de autonomização da prática jornalística – pela adoção de um modelo de reportagem norte-americana – não representou uma ruptura total com o jornalismo político e literário do final do século XIX. Hipótese que é compartilhada por Ribeiro (2003, p. 12) no caso do jornalismo brasileiro:

Parece que o jornalismo o brasileiro, ao ser capaz de assumir cânones discursivos e profissionais próprios, conseguiu assegurar uma certa distancia em relação à literatura. Isso não significa que os dois campos (o literário e o jornalístico) se tenham autonomizado totalmente. Muitos escritores ainda eram jornalistas e muitos jornalistas se aventuravam na vida literária. As duas atividades eram muito próximas e o contato entre elas, inevitável. Na realidade, literatura e jornalismo pertenciam a um mesmo sistema de bens simbólicos, que só se separaram (e adquiriram uma autonomia relativa) na medida em que foram capazes de constituir mercados distintos, associados a lógicas produtivas diversas

Assim, a construção de um espaço jornalístico não resultou de uma evolução linear de uma prática e de um saber intelectual em direção a uma profissão institucionalizada em torno de um saber técnico (Ruellan, 1993). O jornalismo se constitui como um espaço aberto, capaz de se enriquecer “en tirant profit des honneurs de chaque genre sans avoir à souffrir de l’enfermement imposé par la spécialisation” (Ruellan, 1994).
Isso nos permite pensar numa pluralidade de práticas que nem sempre aparecem no discurso de objetivação de um jornalismo, fundamentado por um modelo canônico. Ao contrário, essa diversidade mostra-se como algo implícito à sua construção (Ruellan, 1993). Essa dispersão sócio-discursiva, como mostra Foucault (1969) e (Ringoot e Utard, 2005, p. 42-43), coloca a jornalismo como um espaço que se redefine e se transforma historicamente. Mas que se apresenta “naturalmente” disperso a partir das diferentes recombinações textuais dos elementos que o definem enquanto formação discursiva. “Ordre et dispersion des informations, des énonciations, des stratégies. Cette notion de dispersion permet de penser l’hétérogénéité du journalisme comme constitutive et intrinsèque (…) Dans cette appropriation conceptuelle, il s’agit de considérer comment un discours identifié et identifiable est constitué sous l’action des facteurs et d’acteurs hétérogènes”
Assim, constatamos que mesmo após o fechameno da “fronteira” (Ruellan, 1993) entre os espaços jornalístico e intelectual, certas práticas e certos atores continuaram nesse espaço interdiscursivo, cuja identidade oscila entre as duas ativiaddes.
No caso dos atores selecionados, nota-se uma apropriação de gêneros do jornalismo opinativo por Franklin Martins (ex comentarista de politica da TV Globo, atual comentarista da radio e TV Bandeirantes e colunista do portal iG) o que indica uma identidade que foge das práticas canônicas do jornalismo de reportagem, mas que ainde continua socialmente reconhecidas como “jornalísticas”. Além disso, Martins acaba reproduzindo certos elementos que permeiam os “valores” e o “discurso de legitimação” profissional dos jornalistas na medida em que interage com atores “externos” a este espaço, como mostrou a resposta dada a acesuão feita peloescritor Diogo Mainardi de que ele usaria de relações promíscuas com o meio político para nomear parentes em órgão públicos.
Já Alberto Dines embora tenha uma trajetória brilhante como jornalista (com trinta anos, já ocupava cargos de chefia nas redações) é atualmente reconhecido como pioneiro no Brasil dos trabalhos de media criticism: os Cadernos de Jornalismo publicados entre 1965 a 1973, no Jornal Brasil) e, mais tarde, pela fundação do site (1995) e do programa de TV (1997) do Observatório da Imprensa.
Ao lado, deste trabalho de leitura critica da mídia, Dines é responsável também por uma extensa produção literária composta, sobretudo, por trabalhos de historiografia e biografias. É interessante notar, como o autor busca reivindicar essa produção como um espaço de atuação jornalística:

“Eu acho que o jornalista tem que ter a formação do historiador. Só que ele, o ritmo dele vai ser diferente e a metodologia também. Mas, a atitude perante os fatos é a mesma. Eu acho que todo jornalista tinha que, em algum momento, fazer um trabalho de pesquisa histórica. Para ele sentir, inclusive, as diferenças, para ele, inclusive, saber que o que ele está escrevendo no jornal vai ficar, vai ser consultado daqui a trinta anos como referência histórica”.

“Para mim [a experiência como biografo] foi extremamente importante, e não significou um corte na minha carreira, eu não interrompi a minha atividade jornalística, eu continuei através de um gênero da historiografia que é a biografia. No Brasil daquela época, esse gênero era quase desprezado. Havia alguns acadêmicos como o Luiz Viana e o Raimundo Magalhães que faziam biografias, mas as novas gerações achavam o gênero antiquado e não se dedicavam a ele. Já eu, vi na biografia uma forma de dar continuidade ao meu trabalho de jornalista, uma chance de crescer e sobretudo, de navegar pela historiografia”.

Essa apropriação jornalística do trabalho historiográfico implica em duas direções de pesquisa interessantes. Primeiro o reconhecimento dessa porosidade entre categorias pretensamente distintas. Ou seja, o jornalismo é reportagem, é lead, mas é também história. Da mesma forma que o trabalho historiográfico passa, de alguma forma pelo jornalismo, como mostra os trabalhos de Lavoinne (1992) e Pereira (2006)

Além disso, é interessante notar como esse discurso é uma forma de Dines legitimar esse mecanismo de partilhamento de práticas entre jornalistas e intelectuais, que isso implique em passar pelos mecanismos de reconhecimento oriundos campo universitário (1). Dizer que a historiografia é também jornalismo é ressaltar essa condição instável de ator que não produz mais um jornalismo socialmente canônico, mas que não se sente totalmenet confortável quando identificado com o meio intelectual.

1.2 – Jornalistas e intelectuais como categorias socialmente construídas

Como afirma Ribeiro (2003) até a década de 1950 as atividades de jornalistas, políticos e escritores estavam estritamente ligadas. Pensar num grupo de “jornalistas-intelectuais” nesta época talvez fosse um contrasenso na medida em que as práticas desses atores se configuravam de forma a natualizar a porosidade dessas relações. De fato os “jornalistas-intelectuais” somente se tornam socialmente “visíveis”, quando a definição das fronteiras se torna suficientemente forte para objetivar certas categorias (jornalistas, intelectuais, etc) de forma que esse estatuto híbrido apareça anacrônico no mundo social partilhado por esses atores.
Esse processo de dupla autonomização aparece fortemente ligado pelo contexto da ditadura e redemocratização. De fato, podemos definir brevemente a forma como, nesse período, se redefine a configuração cultural no Brasil.

1.2.1 – Intelectuais no Brasil: “autonomização” e “profissionalização”

Os trabalhos de Pécault (1990), Czajka (2004) mostram como a concepção de intelectual brasileiro estava intimamente ligada ao Estado. Este se colocava como principal instância de criação de postos no setor cultural/educativo (Miceli, 2001). Verfifica-se ainda, no plano ideológico, uma convergência de interesses entre o Estado desenvolvimentista e, mais tarde, trabalhista, e a produção intelectual  no país.
Esse cenário altera-se profundamente à partir do golpe militar de 1964, mas sobretudo, à partir de 1968 quando o general Costa e Silva decreta o Ato Institucional n° 5. Estes eventos implicarão numa ruptura entre a teorização à respeito do papel social dos intelectuais e as formas possíveis de militância política durante a ditadura (Ridenti, 2003):

Há uma reformulação das atividades de esquerda no país (a partir do PCB e do ideário pecebista) que deixa de pensar o Estado único e exclusivamente como centro das transformações históricas da própria revolução brasileira (…). É essa mudança de foco que possibilita uma nova consciência em torno daquilo que representa o esforço do chamado marxismo ocidental, para o qual os valores culturais indistintamente serão reconhecidos também como valores políticos. É, pois, quando a cultura torna-se um espaço legítimo de intervenção do seu principal protagonista: o intelectual (Czajca, 2004, p. 52).

Assim, uma parte dos intelectuais, sobretudo os estudantes radicalizará a ação revolucionária constituindo movimentos de guerrilha urbana e rural. Este é o caso, por exemplo do então estudante universitário Franklin Martins que em 1969 passa a ingressar um grupo de militantes de esquerda responsável pelo seqüestro do Embaixador americano no Brasil Charles B. Elbrick com o objetivo de para forçar o governo a libertar 15 presos políticos
Uma segunda parcela se concentrará nos terrenos da produção cultural (mídias, mercado editorial, fonográfico e audiovisual) e científica (universidades), muitas vezes apoiada pelo próprio governo militar. Processo se acelera sobretudo no início dos anos 1970, quando a ditadura abate a quase totalidade dos movimentos de guerrilha revolucionária.
Finalmente, uma terceiro parte do grupo de intelectuais – que, mescla integrantes dos dois primeiros: ex-guerrilheiros que retornam depois da anistia, professores aposentados compulsoriamente, jornalistas desiludidos com a imprensa censurada e auto-censurada – passa a criar no seio de uma imprensa alternativa, um movimento de resistência à ditadura, seja através de jornais ligados à partidos de esquerda clandestinos ou ao movimento de contra cultura. (Kucinsky, 2003). Nestes jornais, intelectuais, jornalistas a ativistas políticos buscaram construir uma hegemonia socialista ou passaram a expressar novas experiências culturais e estéticas,muitas delas fortemente influenciadas pelo consumo de drogas, por correntes de contra-cultura norte-americana e pelo existencialismo francês (2).
À partir da segunda metade da década de 1970, o regime militar começa o processo de abertura política. Com a distinção, o fim da censura e a anistia, há uma relativa repolitização do debate intelectual no Brasil, mobilizados em torno da redemocratização do país. Os movimentos progressistas, por exemplo, vão renovar os parâmetros de definição da esquerda no Brasil. Observa-se, à partir dessa época um esgotamento do modelo bolchevique do partido revolucionári. e o declínio do arquétipo quixotesco do intelectual de esquerda, a substituição de um discurso de ruptura coletiva com o subdesenvolvimento nacional e a exploração das classes, dando lugar à questões como o acesso individual ao desenvolvimento globalizado (Ridenti, 2003).
Ao mesmo tempo, haverá uma migração dos intelectuais rumo a novos espaços de produção cultural, a maior parte deles criada ou incentivada pelo regime militar. Este, promove uma modernização conservadora da educação, com a massificação do ensino fundamental público e a criação de um sistema de apoio pesquisa e à pós graduação. Da mesma forma, abrirá novos espaços de atuação na indústria cultural, aos intelectuais de oposição, pela criação de órgão públicos e empresas estatais na área da telefonia (sistema telebrás), da produção audiovisual (Embrafilmes), editorial (Insituto Nacional do Livro) e artística (Funarte). Além disso, o governo vai estimular a criação das redes de televisão nacional, em especial a TV globo, bem como a expansão da indústria cultural brasileira (fonográfica, editorial, agências de publicidade etc) (Ridenti, 2003; 2005).
Nesse processo ocorre uma integração parcial das propostas revolucionárias dos anos 1960 e a absorção dos intelectuais contestadores no sistema universitário ou na indústria cultural.

O fato é que a sociedade brasileira foi ganhando nova feição e a intelectualidade que combatia a ditadura aos poucos adaptou-se à nova ordem, que até mesmo instituía um nicho de mercado para produtos culturais críticos, censurando e selecionando alguns deles. Universidade, jornais, rádios, televisões, agências de publicidade, empresas públicas e privadas tendiam a fornecer ótimas oportunidades a profissionais qualificados, dentre os quais se destacavam  os que se consideravam de esquerda, expoentes da cultura viva do momento imediatamente anterior (Ridenti, 2003, p. 203-204).

Assim, as transformações nas formas de ingresso e legitimação no meio acompanham as transformações na atividade e na representação da intelectualidade. O declínio da noção de um intelectual autônomo, engajado na transformação da sociedade à partir do Estado resulta na construção de novos espaços de inserção institucional da intelectualidade que condicionam o forma de suas intervenções. “Por força natural das coisas, abre-se uma era em que os intelectuais, participam da política pretendendo menos atuar de imediato na sociedade do que influenciar seu próprio meio.” (Pécault, 1990, p. 222). Ou seja, de uma definição totalizante da intelectualidade percebemos uma clivagem, entendida como resultado da “profissionalização” dessa categoria”, rumo à universidade, à industria cultural e (em menor escala) aos movimentos sociais.

1.2.2 – A  profissionalização dos jornalistas

A prática, a identidade e a representação social dos jornalistas também passa por mudanças no final da ditadura. Nesse período observa-se uma série de transformações que resultam nulma “profissionalização” do jornalismo, que perde progressivamente o seu caráter político e intelectual. Esse processo incia-se aindo nos anos 1950 com a introdução de técnicas do jornalismo americano nas redações (lead, pirâmide invertida) e da consoliadção da indústria cultural no Brasil.
Nos anos 1980, contudo, assistimos uma mudança ainda mais radical no jornalismo com a introdução do diploma como pré-requisito para o ingresso no profissão (Decreto Lei 83.284/79) e, mais tarde, com a aprovação do código de ética dos jornalistas profissionais 1987. Por um lado, o diploma redefine o perfil do novo jornalista, na medida em que exclui os “aventureiros” (indivíduos que entram no jornalismo por acaso, “sem formação”), além das pessoas que instrumentalizavam o jornalismo, visto como espécie de trampolim para outras carreiras (Sant’Anna, 2005). A carreira de jornalistas com a introdução do diploma começa a ser ocupado por uma profissional com formação mais técnica, menos politizada, menos intelectualizada.
De forma análoga, o código de ética dos jornalistas é uma demonstração de coesão dos jornalistas em torno de um discurso profissionalizante que, ao mesmo tempo que visa delimitar um território (na medida em que coloca um grupo de valores patilhados pelo grupo)  e busca legitimar as funções do jornalismo na redemocratização, coibindo abusos na transmissão de informações, relações promíscuas com as fontes, etc.
De forma concomitante às ações das corporações sindicais, ocorre uma série de transformações no interior das empresas jornalísticas, com a introdudção de técnicas de marketing, de uma produção “imparcial”, menos editorializada, voltada para os interesses da audiência (no sentido conquistar um maior número de leitores). A introdução desse “jornalismo de mercado” (Hallin, 1996) além de sobrevalorizar o aspecto “técnico” do jornalismo, é acompanhada da demissão e do afastamento de antigos jornalistas, vários deles ex-militantes políticos ou intelectuais (Kucinsky, 2003)

Dessa forma, jornalistas e intelectuais se autonomizam como categorias sociais distintas. Esse proceso acaba por objetivar a idéia de uma distribuição de papéis entre os criadores e críticos de cultura e os transmissores dessa produção. Essa separação permeia as representações socias de jornalistas e intelectuais. Os atores que se situam fora dessas representações constituem-se num grupo marginal, na medida em que sua situação reflete esse duplo processo de inlcusão e exclusão no meio jornalístico e intelectual

2. Ser jornalista ou ser intelectual? Os casos s de Alberto Dines e Franklin Martins

Se o estudo das identidades está ligado às transformações estruturais é imprescindível ligá-lo ainda à questões micro-sociológicas, no sentido de saber como cada ator interage com essas mudanças. A identidade dos grupos sociais se funda nas interações. “C’est au cours du face à face interactionnel et, grâce  à lui, que l’on évalue le mieux à soit même et les autres” (Strauss, 1992, p. 47). Nesse sentido, é preciso entender como constrói sua trajetória pessoal e profissional à partir de relações complexas com o mundo político, jornalístico e intelectual. Nos centraremos sobretudo nas questões de formação intelectual e inserção nesses diferentes espaços como mecanismos de construção identitária.

2.1 –  Ruptura e radicalização

A formação intelectual dos dois personagens partede um processo de ruptura / radicalização à esquerda em relação às trajetórias geralmente “atribuídas” ao seu grupo social de origem (pequena-burguesia urbana) se reportando a certos elementos da contextualidade, e às redes de sociabilidade que estabelecem junto a outros atores. Contudo, para explicar essas rupturas é preciso levar em conta a diferença de gerações que existe entre Dines e Martins.
Em Alberto Dines observamos uma decalagem entre a sua auto-percepção e as aspirações políticas de sua geração contra as representações socialmente cristalizadas em torno de sua classe bem como as trajetórias vistas como “naturais” para um jovem judeu. Essa diferença – e ainda as relações pessoais que ele estabelece na época, como o seu amigo cineasta – levam-no a abandonar a escola judaica e dedicar-se a práticas intelectuais relativamente marginais, ou seja, o cinema e o jornalismo:

“Eu não completei o Científico porque, no segundo ano eu me envolvi com o movimento socialista, de novo judeu e antiburguês, atitude que recomendava que se rompessem os vínculos com a burguesia e o primeiro traço da burguesia era o diploma. A maioria não teve essa coragem, eu tive. (…). Em resumo, essa é a minha formação”

“Já pós-adolescente e tendo despertado o gosto pela cultura, pela música erudita, com a qual eu sempre estive envolvido, vi na cultura uma área na qual eu poderia me inserir. Escolhi o cinema e comecei a me dedicar a ele com um companheiro do Andrews, o Alberto Shatovski, que foi crítico de cinema e um dos fundadores do grupo Estação Botafogo, onde está até hoje. Juntos, começamos a estudar cinema. Como não havia escola de cinema e meu pai tinha um escritório na Praça XV, a gente ia de tarde para lá, pegava uns livros de cinema e começávamos a ler. Discutíamos, fazíamos roteiros, estudávamos”.

“1952, e aqui entra a imprensa mais fortemente na minha vida, foi o ano de ouro do Jornalismo brasileiro. (…).E eles [a Revista de Cinema Visão] estavam precisando não de um crítico de cinema, mas de um repórter de assuntos culturais e me contrataram.”

É interessante observar, portanto, que essa radicalização política se traduz na prática intelectual, que será mais tarde convertida numa posição de prestigio no meio jornalístico. A inserção do de Dines é feita num contexto em que o trabalho de jornalista ainda cercava-se uma áurea literária. O próprio Dines, não deixa de ressaltar que seu ingresso deu-se na “época de ouro” da imprensa. Sua conversão de uma formação humanística no colégio hebraico, rumo ao cinema e, finalmente ao jornalismo, pode ser vista como uma trajetória “desviante”, mas que não apresenta realmente um processo de ruptura radical de uma carreira intelectual para uma carreira técnica / profissional.
Outra evidência interessante é a forma como Dines, justifica a ausência de uma formação institucional, ressaltando a importância de outros elementos que lhes garantiria legitimidade intelectual: a qualidade da formação nas escolas hebraicas, a leitura de livros, os cursos de jornalismo que realiza nos Estados Unidos e a própria experiência pessoal e profissional.
No caso da trajetória de Franklin Martins, a importância das “redes de sociabilidade” é mais evidente. Nascido num meio social marcado pela política – seu pai foi jornalista e senador da República cassado pelos militares em 1964 – ele se engaja desde cedo no jornalismo e no movimento estudantil. Ainda secundarista, participa da reorganização dos espaços de resistência à ditadura no interior desse movimento.
Em 1967, Martins ingressa na Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Esta constitui-se num dos principais espaços de manifestação contra o regime militar, principalmente no período que vai da instauração do golpe (1964) à decretação do AI-5 (1968). De certa forma podemos dizer que sua formação intelectual se realiza à partir da atuação junto aos movimentos da esquerda estudantil e pelas interações que estabelece com outros ativistas políticos:

“Eleito presidente do Diretório Central dos Estudantes da UFRJ, nem cheguei a esquentar a cadeira à frente da entidade. Fui preso logo em seguida no Congresso da União Nacional do Estudante, em Ibiúna, São Paulo, em outubro. Fiquei dois meses atrás das grades – entre outros, foram meus companheiros de cela Luiz Travassos, presidente da UNE, que faleceu mais tarde num acidente de carro, Vladimir Palmeira, presidente da UME, José Dirceu, presidente da UEE de São Paulo, e Antônio Ribas, líder secundarista em São Paulo, morto na guerrilha do Araguaia”.

A interação que se estabelecem no interior esses redes de sociabilidade; bem como a visão contexto geral de engajamento na época explicam as escolhas e a percepção de mundo que observamos em Martins. Assim, podemos compreender como, num processo dialético, a radicalização política à esquerda se explica por uma visão de mundo que é socialmente objetivada à partir do contexto histórico e como essa próprio contexto decorre das ações individuais dos atores no interior dos grupos sociais.

2.2 – A Resistência contra a ditadura

Como havíamos destacado, o período que cobre o fim da ditadura e a redemocratização no Brasil mostera-se essencial para compreendermos a identidade desses atores. Este se constrói pela (auto) exclusão dos espaços “convencionas” de inserção na imprensa e pela busca de novas frentes de atuação junto ao meio político e intelectual, o que explica, em parte o caráter dúbio da identidade de Dines e Martins.
Logo apos a decretação do AI-5, Alberto Dines, por exemplo, encontra-se na chefia de um grande cotidiano (Jornal do Brasil). O fato de ocupar uma posição já institucionalizada reduz o grau de radicalização deste jornalista-intelectual. Os movimentos de resistência de Dines consistem no enfrentamento à censura e à auto-censura que atinge a imprensa nesse período. A publicação de capas sugestivas como forma de driblar os censores e a publicação dos trabalhos e leitura critica dos meios (os cadernos de jornalismo) podem ser considerados como movimentos de insatisfação de Dines pela prática jornalística em voga na grande imprensa:

“Eu sempre me preocupei em discutir Jornalismo. (…) Para mim era importante sistematizar a minha experiência e eu realmente tinha uma experiência para passar para as novas gerações também. Durante esses anos todos, de 1963 até 1973, mais ou menos, eu fui professor da PUC do Rio de Janeiro. Criei uma cadeira, Jornalismo Comparado, que ainda não existia. E era importante para mim, era a forma que eu tinha de estudar, sobretudo levando em consideração que eu não tinha uma formação e uma educação formal. Com a minha saída do Jornal do Brasil, as portas se fecharam imediatamente (…). Eu pensei “vou ter que me virar, pode ser até que tenha que mudar de profissão; então, eu vou escrever um livro contando o que foi essa experiência do Jornal do Brasil, contando o que for possível contar”.

Mais tarde, entre 1977 e 1980, Dines volta à imprensa tradicional como colunista do Jornal Folha de Sao Paulo. Mas, ele novamente ele é demitido por razões políticas, passa por uma breve atuação na imprensa alternativa e produz Morte no Paraíso, a biografia do escritor austríaco Stefan Zweig. A partir dai, a atividade de biografo e de critico da mídia são integradas à prática e à identidade de Dines. Ainda em 1983, ele escreve O judeu, biografia de Antonio José da Silva, feita à partir de uma extensa pesquisa documental junto aos arquivos da Torre do Tombo em Lisboa. Da mesma forma, busca conciliar a atividade jornalística e acadêmica  com a criação do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) e, posteriormente do Observatório da Imprensa.
O processo de inserção de Dines no meio intelectual fundamenta-se, em parte na sua legitimidade profissional, mas, sobretudo nas atividades extra-redação como a produção historiográfica e de media criticisme (embora Dines as identifique como jornalísticas). Ocorre, portanto, um reconhecimento intelectual, que se restringe aos meios jornalístico e universitário, seja como um profissional paradigmático; seja como um jornalista que ingressa no meio intelectual, sem a necessidade de cumprir todos os rituais necessários admissão (defesa de tese, por exemplo)
No caso de Franklin Martins, esse processo de ruptura e posterior reinserção é mais brusco. A instituição do AI-5 praticamente acaba com as formais legais de atuação política das esquerdas. A saída encontrada por ele, e por diversos estudantes da sua geração, é a radicalização nos movimentos de guerrilha comunista. Em setembro de 1969, Martins integra o grupo, formado por militantes da Ação Libertadora Nacional e do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e que seqüestra o embaixador americano Charles B. Elbrick para forçar o governo a libertar 15 presos políticos. Segue-se o exílio em Cuba e no Chile (1973), o retorno ao Brasil como clandestino (1974) e um novo exílio em paris (1974-1977), onde diploma-se pela  École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHHSS).
Em 1977, ainda como clandestino, Martins retorna ao Brasil. Sua inserção na indústria mídia acontece no inicio da década de 1980 com o desligamento do MR-8 (1982) e o ingresso no jornal O Globo (1985). Mais tarde (1994), torna-se jornalista político na TV Globo de Brasília, onde realiza trabalhos de reportagem, colunismo, edição e direção. Assim, observamos uma espécie de conversão do capital cultural e simbólico adquirido durante o período de engajamento à esquerda numa legitimidade enquanto jornalista e intelectual junto ao público, por intermédio dos meios de comunicação.

Considerações finais

Durante a análise, percebemos uma correlação entre o estatuto dessa categoria – sua legitimidade e proximidade junto ao meio intelectual – e a existência trajetórias desviantes no interior do espaço jornalístico. Além das rupturas apontadas no decorrer de suas biografias, tais atores se legitimam atualmente pelo desenvolvimento de práticas que ultrapassam a lógica da reportagem informativa, socialmente objetivada como elemento de atribuição de uma identidade jornalística.
Verificamos ainda a importância das redes de sociabilidade na compreensão das trajetórias de vida, bem como na construção de um percepção de mundo e de uma legitimidade junto aos diferentes espaços sociais em questão (jornalístico, universitário, político,  etc).
A decalagem geracional observada durante a análise aponta para uma transformação nos mecanismos de legitimação desses jornalistas como intelectuais. Enquanto o estatuto atribuído a Dines aponta para uma legitimidade estabelecida junto a um público mais restrito (meio jornalístico e intelectual); Martins se legitima, sobretudo, junto ao grande público. Essa decalagem evidencia o que Rieffel (1992; 1993) aponta, no caso da França, de mudança na configuração intelectual ou que Bourdieu (1984; 1997) coloca como as transformações na estrutura do campo de produção cultural.
Por fim, essa análise piloto demonstrou a precariedade da identidade associada ao grupo de jornalistas-intelectuais. A diversidade das práticas sócio-discursivas adotadas por Martins e Dines no decorrer de suas carreiras, inviabiliza a construção da uma categoria funcional de jornalistas-intelectuais. Da mesma forma, o uso do interacionismo simbólico como ponto de partida para o nosso estudo biográfico implica em aceitar a riqueza encontrada nessas historias de vida, o que dificulta o pode categorização das trajetórias encontradas nos diferentes atores. Os jornalistas-intelectuais, enquanto categoria de análise se mostra como um objeto instável

Notes

(1) Nesse sentido Bourdieu (1984) critica o uso dos media por certos jornalistas-intelectuais franceses como uma forma de ascender mais rapidamente no campo universitário, sem se submeter aos mecanismos tradicionais de legitimação e conquista de capital cultural e simbólico.

(2) Vale destacar que, segundo Kucinski  (2003, p. 16), a imprensa alternativa se constitui como espaço nodal de interação entre diferentes grupos intelectuais engajados contra a ditadura “A imprensa alternativa surgia da articulação de duas forças igualmente compulsivas : o deseje das esquerdas de protagonizar as transformações que propunham e a busca por jornalistas e intelectuais, de espaços alternativos à grande imprensa e à universidade. É na dupla oposição ao sistema representado pelo regime militar e às limitações à produção intelectual-jornalistica sob o autoritarismo que se encontrava o nexo dessa articulação entre jornalistas, intelectuais e ativistas político”.

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Auteur

Fábio Henrique Pereira

.: Doutorando Universidade de Brasilia (UnB), Université de Rennes 1/ Centre d’études sur l’Action Politique en Europe (Crape)