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Lula, de sindicalista a Presidente da República: as mudanças nos discursos políticos de Lula sob a perspectiva da temática emprego

26 Jan, 2007

Lula, de leader syndicaliste à président de la république : les modifications aux discours politiques de Lula dans la perspective du sujet emploi

 

Résumé

Cet article examine la trajectoire du discours politique du Président de la République, Luiz Inácio Lula da Silva, suivant la théorie de l’argumentation de Chaïm Perelman et l’analyse du discours française. On a décrit et analysé les modifications au discours du Président manifestées par l’argumentation sur la question du emploi au Brésil. Le corpus révèle l’existance de phases distinctes dans la vie politique de Lula. On a analysé les discours sur l’emploi prononcés par Lula en tant que leader syndicaliste,fondateur du Parti des Travailleurs, député fédéral, candidat vaincu à trois élections présidentielles consécutives et finalement pendant la première année de son mandat présidentiel. L’article a permis de mettre en évidence les traits discoursifs pertinents au cours de trente ans de vie publique, ainsi que le significatif changement d’arguments pendant cette période.

Mots clés

communication ; langage ; politique ; discours politique ; Lula.

Em português

Resumo

O artigo examina a trajetória do discurso político do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, segundo a teoria da argumentação, elaborada pelo autor belga Chaïm Perelman, e a análise do discurso francesa. Buscou-se descrever e analisar as mudanças do discurso do Presidente, manifestadas na argumentação sobre a questão do emprego no Brasil. O corpus ilustra a existência de fases distintas na vida política de Lula. Analisaram-se os discursos nos quais se detectou a mencionada temática, quando sindicalista, fundador do Partido dos Trabalhadores, Deputado Federal, candidato derrotado em três eleições presidenciais consecutivas e durante o primeiro ano como condutor maior da Nação. Ficaram evidentes traços discursivos pertinentes ao longo de 30 anos de vida pública e uma mudança significativa de argumentos no decorrer desse período.

Palavras-chave

comunicação; linguagem; política; discurso político; Lula.

Pour citer cet article, utiliser la référence suivante :

Panke Luciana, « Lula, de sindicalista a Presidente da República: as mudanças nos discursos políticos de Lula sob a perspectiva da temática emprego« , Les Enjeux de l’Information et de la Communication, n°07/2, , p. à , consulté le , [en ligne] URL : https://lesenjeux.univ-grenoble-alpes.fr/2006/supplement-a/27-lula-de-sindicalista-a-presidente-da-republica-as-mudancas-nos-discursos-politicos-de-lula-sob-a-perspectiva-da-tematica-emprego

Introduction

Outubro de 2002: o metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito Presidente da República Federativa do Brasil com quase 53 milhões de votos e conquistou a segunda maior votação mundial, perdendo apenas para o norte-americano Ronald Reagan, em 1984. Após três tentativas frustradas ao concorrer ao cargo e três décadas de vida pública, Lula, reformulou sua imagem contestadora e se elegeu sob a alcunha Lulinha paz e amor, apresentando-se como estadista e conciliador.
Para exemplificar as alterações no discurso de Lula, escolheu-se a temática emprego porque ela corresponde a uma das principais questões abordadas pelo atual presidente brasileiro,  pertencente ao Partido dos Trabalhadores (PT).
A preocupação popular com o tema também pôde ser verificada na pesquisa de opinião (1), encomendada pelo PT, cujo resultado apontou a questão do emprego como prioritária a curto e médio prazo. Os números levantados superam, inclusive, a proposta original de campanha de lançar um programa de combate à fome no país, o Fome Zero. Para o primeiro ano de governo, a criação de postos de trabalho ficou com 33% da preferência, contra 24% de um projeto de combate à fome. Já para o mandato, a diferença foi ainda maior: 32% avaliaram a solução do problema como imprescindível, contra 19% a favor do Programa Fome Zero.
Portanto, a questão pode ser considerada o grande desafio do governo petista. Este estudo, entretanto, não tem a pretensão de julgar as ações governamentais, nem avaliar o seu desempenho. Pretende, sim, apontar o tratamento dispensado a um assunto tão relevante para um líder de esquerda.
A abordagem teórica selecionada para a investigação é fruto de reflexões sobre a Análise do Discurso e a Teoria da Argumentação. Para delimitar o corpus recorreu-se a uma pesquisa histórica visando angariar amostras nos períodos selecionados: sindicalismo, fundação do Partido dos Trabalhadores, mandato de Deputado Federal, candidato em quatro eleições presidenciais e primeiro ano como Presidente da República.
Os elementos da AD, aliados à teoria da argumentação proposta por PERELMAN (1996), são os aparatos considerados necessários para compreender, então, o foco principal deste trabalho que é o discurso político. Como, afinal, pode-se conceituar discurso político? Há uma série de usos equivocados do termo. Comumente, o discurso político é relacionado diretamente à fala de pessoas que visam cargos públicos governamentais ou legislativos, seja no momento de eleições ou então depois do pleito. Entretanto, discurso político é a manifestação pública e lingüística de qualquer pessoa que tenha considerações sobre a polis. Dessa forma, o discurso político possui ramificações conforme os campos discursivos aos quais o conteúdo esteja relacionado. Por exemplo, discurso religioso, jurídico, econômico, educacional, bem como o discurso eleitoral e o governamental.
Os traços em comum entre eles é que caracterizam esse tipo de discurso. Em primeiro lugar, abordam questões relacionadas à vida em sociedade. Por vezes, apresentam problemas e podem apontar soluções. Quem fala é legitimado para tal e se posiciona em nome de determinado grupo ideológico, seja institucional ou não. Um padre, por exemplo, não se pronuncia publicamente em seu nome, mas em nome da instituição Igreja. Um presidente de associação de bairros se coloca, representando sua comunidade. O mesmo posicionamento se verifica com sindicalistas, deputados e presidentes da república.
Outra característica que se evidencia no discurso político é que ele se projeta, por natureza, em relação ao futuro no qual o orador se baseia para estruturar a argumentação. As possibilidades assinaladas são fundadas nos acordos estabelecidos com o auditório. Em geral, a referência ao passado se faz como contextualização ou como técnica argumentativa: ora se busca provar que o realizado não foi satisfatório ou para provocar reflexões, ora se procura demonstrar, por atos do passado do próprio orador, menções para fortalecer a credibilidade do discurso, e estabelecer um suposto voto de confiança ao que é falado.
A relação temporal é de suma importância argumentativamente, afinal, expõe uma estratégia que se refletirá na própria formação discursiva. Com o conhecimento a respeito do contexto social e econômico pode-se projetar situações ideais e apontar acontecimentos anteriores não desejados, estabelecendo relações de causa e conseqüência. O passado é usado para respaldar mudanças – geralmente oriundas de algum erro de adversários ou de antecessores – ou solidificar atos e ações consideradas frutíferas. O futuro é apenas uma possibilidade. Assim sendo, o discurso político apodera-se desses fatos, oferecendo soluções hipotéticas e alimentando o imaginário da população.
O discurso político, portanto, só pode ser analisado a partir de sua relação com os elementos que o circundam. A partir do contexto, é possível visualizar qual é o público e quais são as premissas necessárias para se estabelecer afinidade, ou ao menos, criar uma pré-disposição. São as estratégias lingüísticas que materializarão as proposições, tornando real, discursivamente, o que antes não passava de um plano de ação ou de uma intenção ideológica.
O discurso, enquanto um ato social manifestado lingüisticamente, possui uma estrutura enunciativa que articula as proposições desejadas. Nesse sentido, a retórica adotada compreende um dos elementos constituintes do processo argumentativo. Ela foi retomada pelos autores belgas Chaïm PERELMAN e Lucie OLBRECHTS-TYTECA, que publicaram em 1958, o Traité de l’argumentation; la nouvelle rhétorique, cuja obra se difundiu na França na década de 70.
Os autores se baseiam na retórica e dialética grega para defender a Nova Retórica no Tratado da Argumentação. Elespropõem uma teoria filosófica e defendem que a argumentação exige ação racional, tanto por parte de quem argumenta quanto do ouvinte. Rompem com a noção de razão, originária em Descartes, que dominou a filosofia ocidental nos últimos três séculos. Com ela, a lógica desacreditava tudo o que não pudesse ser provado com a demonstração. Para Descartes, todo verossímil era considerado falso e a evidência se tornou a marca maior da razão por corresponder à verdade provada.
Na Nova Retórica, o esquema argumentativo proposto por PERELMAN e TYTECA é composto basicamente pelo auditório, acordos e técnicas. O auditório é classificado em particular e universal; os acordos nas categorias do real e do preferível e as técnicas argumentativas em argumentos baseados na estrutura do real, argumentos quase-lógicos e argumentos fundados no caso particular. Neste trabalho, enfatiza-se a observação nas técnicas argumentativas utilizadas por Luiz Inácio Lula da Silva.
As técnicas se encarregam do encadeamento lingüístico dos argumentos. Elas se desenvolvem utilizando esquemas formais nos argumentos quase-lógicos, enfatizando conhecimentos empíricos nos argumentos baseados na estrutura do real ou apresentando exemplos no caso particular. A classificação quase-lógica, aproxima a linguagem do pensamento formal, isto é, baseada em raciocínios matemáticos ou de fundamento lógico. São os argumentos de contradição, identidade, tautologia, análise, reciprocidade, transitividade, inclusão da parte no todo, divisão do todo em partes, comparação, sacrifício e probabilidades.
Os argumentos baseados na estrutura do real trazem as situações que fogem à demonstração. PERELMAN (1996) argumenta que como não há fórmula rígida para a estrutura desse tipo de argumentação, o que importa é que os dados sejam fortes o suficiente para o desenvolvimento do discurso. Ele pondera que « o que nos interessa aqui não é uma descrição objetiva do real, mas a maneira pela qual se apresentam as opiniões a ele concernentes; podendo estas, aliás, ser tratadas, quer como fatos, quer como verdades, quer como presunções » (1996:298).
A argumentação fundada na estrutura do real é relacionada com os conhecimentos empíricos do orador e do auditório, sendo suscetível à interpretação. Ela é baseada em ligações de sucessão, de coexistência, simbólicas e hierárquicas, pois busca nos fatos empíricos a sustentação necessária para a defesa da tese. A argumentação fundamentada no caso particular utiliza-se de exemplos, ilustrações ou modelos que possam aproximar o discurso da realidade vivenciada pelo público-alvo.

Discursos de Lula sobre a temática emprego

Entre os resultados relevantes da pesquisa, destaca-se a divisão dos discursos da vida política do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2) em três fases distintas, doravante classificadas como: extrema esquerda, transição e centro esquerda.

  1. Fase extrema esquerda: sindicalismo – 1968 a 1980, fundação do Partido dos Trabalhadores, Deputado Federal – 1986 e disputa à eleição presidencial – 1989.
  2. Fase transição: governo paralelo, caravanas da cidadania, candidatura às eleições presidenciais, de 1994 e 1998.
  3. Fase centro esquerda: eleição à Presidência da República em 2002 e no momento atual, como Presidente da República.

Primeira fase – décadas de 70 e 80

A pesquisa sobre a primeira fase dos discursos de Lula, classificada aqui como extrema esquerda, mostra que o período de sindicalismo é caracterizado por uma formação ideológica emergente, com fundamentos no marxismo, que cobrava liberdade de expressão e criticava a exploração das massas pelos detentores do capital. A situação brasileira, na época, foi relevante para a manifestação das idéias ocorrer de forma contestadora. O país vivia o regime de Ditadura Militar e diversos movimentos populares clandestinos discutiam uma forma de acabar com aquele sistema, restabelecendo a democracia. O sindicalismo, nesse contexto, destacou-se pela organização da classe operária, findando com a realização de greves nacionais que contagiaram outras categorias.
Influenciada pelo contexto e pela ideologia, a formação discursiva de Lula manifestou informalidade, predominância de vocativos e de comparações. O auditório era basicamente formado pela classe trabalhadora assalariada, que firmou acordos com o orador quanto à luta pela liberdade de expressão e pela melhoria das condições de trabalho. Durante o sindicalismo, a questão emprego se relacionava com as lutas pelos direitos trabalhistas e pela melhoria das condições de trabalho para o operariado.
Com a criação do Partido dos Trabalhadores, no início da década de 80, os discursos articulavam questões mais abrangentes, como a organização política e as decisões na área econômica. Nesse momento, Lula inseriu na sua fala a necessidade de geração de empregos cobrando ações das esferas governamentais. As condições de produção correspondiam ao início da abertura democrática no Brasil e à organização das classes populares e o PT foi o primeiro partido a se manifestar na campanha pelas « Diretas Já! », realizada em 1984. Com isso, a ideologia dominante na formação do Partido correspondia a princípios socialistas, com manifestações por condições iguais de oportunidades, pela distribuição de renda e por direitos políticos. A estrutura argumentativa dos discursos de Lula manteve a informalidade com o uso constante de vocativos e comparações e da argumentação pelo exemplo, superação, direção, ligação simbólica e causalidade.
O mercado e suas leis eram tidos como injustos e passíveis de modificações estruturais com a proposta de dissolução do sistema vigente para implantação de um modelo socialista. « (…) sentimos na própria carne, e queremos, com todas as forças, uma sociedade que, como diz o nosso programa, terá que ser uma sociedade sem explorados e sem exploradores. Que sociedade é esta senão uma sociedade socialista? » (LULA, 1981). A força da expressão retórica manifesta-se na ênfase em « sentimos na própria carne »(argumento de superação e requisito fundamental para a construção da figura do herói), « com todas as forças »e a pergunta final – típica do modelo retórico para introduzir as respostas articuladas. O discurso socialista interpela esse sujeito ao afirmar o desejo de uma sociedade sem explorados e sem exploradores.
Com a retomada da democracia no Brasil, vieram as eleições diretas à presidência da república, apresentando a candidatura de Lula. As estratégias petistas nas campanhas eleitorais apresentaram modificações com o passar dos pleitos. Lula disputou o segundo turno contra Fernando Collor, representando o pensamento da esquerda brasileira. Ele ainda mantinha características do perfil operário, tanto por sua postura ideológica, como pelo visual. Os aspectos remanescentes do período sindical correspondiam a um discurso coloquial e crítico, eliminando o diálogo com as classes dominantes e os acordos firmados com o Fundo Monetário Internacional.
A crítica ao sistema era claramente divulgado, como se pode observar no trecho a seguir, extraído do programa veiculado no Horário Eleitoral Gratuito:
Todo trabalhador sonha em poder comprar um presente de natal para o seu filho. (…) Esse é um sonho, esse é um sonho pequeno, esse é um sonho que não é nada pá (sic) quem trabalha a vida inteira. Pra quem trabalha 240 horas por mês. Esse é um sonho que não deveria ser nada pra quem trabalha de sol a sol. E por que não pode fazer isso? Por que não podem? Exatamente porque o sistema que predomina nesse país é um sistema capitalista arcaico, onde meia dúzia pode tudo e a maioria não pode nada. (LULA, 08/10/1989)
Esse período durou pouco mais de 20 anos, o que explica a imagem predominante de Lula no imaginário coletivo. Na ocasião, Lula, contestador, consagrou-se como uma liderança popular, abrindo a possibilidade de organização das massas.

O período de transição – meados década de 90

Nas eleições de 1994, o PT considerava Lula vitorioso, devido à falência do governo Collor e à liderança do Partido no processo de impeachment. Entretanto, em julho daquele ano, o então Ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, lançava o Plano Real. Com a moeda estabilizada, o país preferiu permanecer com FHC já no primeiro turno. A sua reeleição em 1998, foi fruto de articulações políticas com os governadores e o Congresso Nacional e Lula sequer chegou ao 2o. turno.
Mas foi nessas duas eleições que o PT se disponibilizou para acordos com outros partidos de esquerda, ao contrário da primeira disputa. O período é considerado de transição apontando para o amadurecimento político do Partido, que conseguiu projeção nacional, conquistando prefeituras e vagas nas Câmaras de Vereadores, de Deputados e no Senado Federal. No discurso, permaneciam traços discursivos, como as comparações e Lula começou a citar trechos de sua história, consolidando-o como símbolo de esperança de que se apossou. O conteúdo das falas ainda se referia às bases populares, entretanto, ganhou ênfase a política econômica do País, tema que nos períodos anteriores era tratado genericamente, ou com propostas que eliminariam, se aprovadas, o sistema vigente.
Nesse contexto, houve uma reformulação da imagem do candidato, passando a apresentar um perfil mais conciliador, moderno e plural, conforme se observa neste trecho transcrito do programa veiculado no Horário Eleitoral Gratuito:
Antes de começar essa campanha, eu resolvi viajar pelo Brasil. Percorri 40 mil quilômetros, de trem, de ônibus e de barco. Conversei com pequenos, médios e grandes empresários. Conversei com sindicalistas. Conversei com índios. Conversei com pescadores. (…) Eu conversei com toda a sociedade brasileira para ganhar subsídios para construir um programa de governo. Um programa de governo não como uma peça de laboratório, mas um programa de governo olhando nos olhos das pessoas, no coração das pessoas. (…) Nessa viagem eu aprendi que o povo brasileiro está precisando apenas de uma oportunidade. Uma oportunidade de trabalhar. Uma oportunidade de produzir. Uma oportunidade de conquistar a cidadania. (LULA, 1994)
O discurso mais amplo é constatado pela variedade de públicos citados e por expressões como « conversei » e « aprendi », indicando ponderação. Há uma tentativa de sensibilização com a explanação da viagem pelo país buscando provar o conhecimento do então candidato pelas causas populares brasileiras. A questão do emprego é apresentada como uma ferramenta de conquista que Lula chamava de cidadania.

Lula e o discurso centro-esquerda – período atual

A consagração da lógica que está regendo o governo Lula manifestou-se em junho de 2002, com a publicação da Carta ao Povo Brasileiro. O documento apresenta as diretrizes que seriam adotadas no caso da vitória petista, especialmente em relação às medidas econômicas. Por exemplo, enquanto nas campanhas de 1989 e 1994, o Partido não cogitava o cumprimento dos acordos com os credores internacionais, em 1998 se propunha a analisá-los e na Carta, comprometeu-se a cumpri-los.
A campanha vitoriosa seguiu aquele raciocínio, mostrando um candidato ponderado e estadista. O slogan « a esperança venceu o medo » reforçou o caráter simbólico de Lula, que se colocava como a esperança do País. A adesão de um novo público à sua candidatura explica-se, entre outros fatores, por sua postura de rompimento com os velhos dogmas do PT, sua mudança em relação às propostas econômicas e à vice-presidência preenchida por um partido de direita, o Partido Liberal (PL).
A questão do emprego mereceu destaque com a  promessa da criação de 10 milhões de vagas em quatro anos. De acordo com a pesquisa realizada anualmente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva herdou 7,9 milhões de desempregados.
Durante o primeiro ano de governo, o Presidente Lula proferiu 261 pronunciamentos que se fundamentaram em valores comuns à humanidade, como justiça social e liberdade, o que revela uma permanência em relação aos períodos anteriores. Entretanto, outras questões antes inimagináveis para a sua fala, foram inseridas. O emprego, por exemplo, foi elemento legitimador para sustentar os discursos onde defendia as parcerias com o capital privado nacional e estrangeiro ou para justificar a implantação de reformas nem sempre bem-vindas.
O programa mais enfatizado, especialmente no primeiro semestre de 2003, foi o Primeiro Emprego, destinado à juventude, realizado em parceria com a iniciativa privada. Durante o lançamento do Programa, Lula dividiu o compromisso com outros segmentos da sociedade, ao contrário da primeira fase quando a geração de empregos era atribuída somente ao governo.
Eu diria que, hoje, nós estamos dando um passo excepcional, para resolver um dos problemas mais graves que o Brasil vive hoje. E a verdade é que não é um compromisso só do Presidente da República ou do Ministro do Trabalho, ou, individualmente, de qualquer pessoa. Gerar empregos passa a ser uma responsabilidade coletiva. E gerar empregos para jovens é mais do que uma responsabilidade coletiva: é a gente plantar, hoje, o futuro que precisamos colher amanhã (LULA, 30/06/2003)
Os discursos incitavam a participação social na discussão das propostas, como por exemplo, a criação do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, e também dividiam responsabilidades, especialmente, com a iniciativa privada. No segundo semestre, a ênfase ficou para as Parcerias Público-Privada  que o governo esperava implementar, para que auxiliassem a sanar questões, como infraestrutura e emprego. A geração de emprego e de renda parece se enquadrar na classificação das « frases feitas da política », tamanha sua utilização e obviedade.

Entendo que a única e definitiva resposta ao desafio da inclusão social é o desenvolvimento sustentado, com geração de emprego e renda. Sei, também, que este salto de qualidade não vai acontecer pela simples vontade do governo e da população.Por isso, estamos criando os instrumentos e regulamentos capazes de reconstruir a poupança interna e atrair os investimentos produtivos de empresas nacionais e estrangeiras. (LULA, 18/12/2003).
A justificativa de aceitar « investimentos produtivos de empresas nacionais e estrangeiras » encontra-se na inclusão social que, por outro lado, apresenta uma relação de dependência com aquele capital mencionado « este salto de qualidade não vai acontecer pela simples vontade do governo e da população ». A admissão desse fato contraria a prerrogativa do socialismo democrático pregado pelo PT. Mas como lembra SINGER (2001,p.86) « desde 1991, o partido rejeita a ditadura do proletariado e defende a alternância no poder, e o socialismo petista admite a convivência com o mercado e a propriedade privada ». Portanto, favorecer a entrada de capital estrangeiro e dividir responsabilidades de infraestrutura com o setor privado pode indicar que a mutação ideológica do Partido continuava a levá-lo às decisões de centro-esquerda.
O Presidente aderiu a uma lógica de mercado defendendo publicamente a entrada de capital privado e/ou estrangeiro no Brasil. Entretanto, não esqueceu de enfatizar sua preocupação com as questões sociais. Essa combinação comprovou o distanciamento do discurso sindical e das origens petistas ao se aproximar de uma plataforma social-democrata. Constatou-se, também, a insistência de Lula em afirmar que as decisões do governo eram tomadas em conjunto com a sociedade e, a partir disso, as responsabilidades também seriam divididas. A adesão a um discurso mais eloqüente exemplifica-se pelo uso da palavra « desemprego », que no primeiro ano no Planalto, foi citada apenas 45 vezes (5%) em relação à palavra « emprego », mencionada 359 vezes (37%), o que indica a inversão de valores, comparando-se às fases precedentes, quando predominava a primeira expressão.
Com a pesquisa, verificou-se que a geração de empregos foi elemento legitimador de ações, muitas vezes vistas com restrições pela sociedade, como as reformas previdenciária, agrária e tributária. Conforme afirma CHAUÍ (1984), ao apresentar as três fases de consolidação da ideologia, num primeiro momento, líderes da classe em ascensão criam um sistema de idéias, que, em uma segunda instância, passam a ser compartilhadas pelo grupo como as soluções nas relações de dominação, para, por último, após a vitória da classe emergente, manter-se a ideologia sedimentada, mesmo com a consciência dos novos dominantes e dominados, de haver uma repetição do sistema anterior.
Isto significa que, mesmo quando os interesses anteriores, que eram interesses de todos os não dominantes, são negados pela realidade da nova dominação – isto é, a nova dominação converte os interesses da classe emergente em interesses particulares da classe dominante e, portanto, nega a possibilidade de que se realizem como interesses de toda a sociedade – ,   tal negação não impede que as idéias e valores anteriores à dominação permaneçam como algo verdadeiro para os dominados. (CHAUÍ, 1984:109)

Durante as três décadas analisadas, a argumentação, aliada à fundamentação em valores universais, enalteceu as qualidades do trabalhador brasileiro. Enfatizaram-se as características, « competência, inteligência, amabilidade e disposição ». Algumas vezes, ressaltaram-se alguns aspectos para provar a tese de que os assalariados poderiam engajar-se em uma luta por melhores condições de vida, como nas fases de sindicalismo à campanha de 1998. Na terceira fase, a partir de 2002, a qualificação do operário foi também apresentada como uma vantagem para os investidores estrangeiros e como forma de avalizar as propostas governamentais. Nesse trecho do discurso proferido no Fórum Mundial Econômico, em Davos, em janeiro de 2003, Lula garantia que « (…) Nossa infra-estrutura deverá ser ampliada, inclusive com a participação de capitais estrangeiros. Somos um país acolhedor. A tolerância e a solidariedade são características do povo brasileiro. Temos uma força de trabalho qualificada, apta para os grandes desafios da produção neste novo século ».
Nesse pronunciamento observa-se uma explícita alteração, pois o Presidente abre as portas do país para o capital estrangeiro, situação jamais concebida caso permanecesse com a ideologia enraizada ao longo da trajetória do Partido dos Trabalhadores. Nos discursos de Lula na década de 80, por exemplo, constata-se essa incoerência com o pronunciamento em Davos. « Queremos mudar a relação entre capital e trabalho. Queremos que os trabalhadores sejam donos dos meios de produção e dos frutos de seu trabalho », defendia na 1a. Convenção, em 1981. O parágrafo exibe a ideologia tipicamente socialista e incompatível com a admissão atual de acolher o capital estrangeiro no País. Em 1984, Lula dizia que para uma multinacional o mais importante era o lucro, dando a entender que não havia preocupação com a população do país que recebesse a indústria, no que se referia à geração de empregos. « Para uma empresa como a Ford, tanto faz produzir 1000 carros com 1000 empregados ou produzir 1000 carros com 30.000 empregados. O que importa é o lucro no fim do mês ».
O Presidente Lula, em Davos, vendeu a força de trabalho nacional como sendo competente, e, mais do que isto, tolerante e solidária. A expressão tolerante pode implicar no entendimento de uma certa submissão por parte do povo brasileiro, que, pela fala do Presidente, acolheria o capital estrangeiro em seu país. Mais do que isto, ele deixa clara a possibilidade de uma abertura ainda maior para esse interesse estrangeiro. « Nossa infra-estrutura deverá ser ampliada, inclusive com a participação de capitais estrangeiros ». Quando fala em nome dos brasileiros, utilizando o pronome « nosso », Lula corrobora com ações iniciadas por seus antecessores. Desde a era Collor, o Brasil recebe a participação financeira internacional de forma acentuada, o que proliferou consideravelmente na era FHC, com as privatizações. Pelas alterações observadas no discurso lulista, conclui-se um continuísmo na política econômica voltada para o mercado, em função do distanciamento da ideologia manifestada nos períodos precedentes da sua vida pública.

Notes

(1) O universo pesquisado correspondeu à população com idade a partir dos 16 anos, totalizando 2416 entrevistas aplicadas em 137 municípios distribuídos em 23 estados. A equipe responsável da Criterium Consultoria, previu, com esta metodologia, um intervalo de 95% de confiança.

(2) Ao enfatizar as origens, Lula procura criar proximidade com a maioria da população brasileira. « Falar sobre mim é a mesma coisa que falar sobre, quem sabe, milhões de brasileiros, que saíram do nordeste ou saíram do campo, para vir arriscar a sorte na cidade grande » (LULA, citado por DANTAS, 1981:11). Na família de Lula isso aconteceu em 1952, quando a mãe, Eurídice Ferreira de Mello, decidiu sair de Garanhuns, cidade natal do Presidente, no interior do Pernambuco, com os sete filhos. Eles viajaram 13 dias num caminhão pau de arara até Santos, no litoral paulista. O objetivo era encontrar o marido, Aristides Inácio da Silva e o filho mais velho do casal, que tinham se mudado havia 5 anos. Na ocasião, Lula tinha 7 anos. Mas, chegando a São Paulo, o pai dele já havia constituído outra família. D. Lindu tomou a decisão de separar-se do marido e , sozinha, criou os filhos. Lula começou a estudar com 10 anos, cursando até a 5a. série do Ensino Fundamental. Com 12 anos, ele conseguiu o primeiro emprego: foi em uma tinturaria. Posteriormente trabalhou como engraxate e office-boy. Aos 14 anos teve a carteira assinada pela primeira vez e depois de estudar no SENAI, tornou-se metalúrgico. Em 1964, já em outra metalúrgica, sofreu um acidente de trabalho quando perdeu o dedo mínimo da mão esquerda em uma prensa. Em 1966, ficou seis meses desempregado até conseguir uma colocação na empresa Villares, onde iniciou a vida sindical.

Bibliografia

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Auteur

Luciana Panke

.: Prof.a. Dr.a. Departamento de Comunicação Social – Universidade Federal do Paraná – Brasil